Lições de vida
Difícil precisar em que momento de minha vida passei a ter uma preocupação com o envelhecimento e em estar preparado para aceitar e saber lidar com as possíveis debilidades e restrições que a longevidade nos impõe.
Tenho clareza da partida de meu avô materno, aos 81 anos, dormindo em sua poltrona, no ano em que decidiu parar de trabalhar. Simbolicamente, por ironia do destino, ele foi sepultado no dia 1º de maio, Dia do Trabalhador. Sim, esse “alemãozão” que chegou ao Brasil no entre guerras, enfrentou diversas dificuldades, preconceitos e perseguições. Sempre o tive como um exemplo de valores e família. Com ele, aprendi o real significado do trabalho e de se sentir contributivo com a sociedade, condição essencial para nos sentirmos realmente vivos. Desse convívio breve, de apenas 17 anos, extraí esse aprendizado e compreendi a importância de permanecermos ativos, úteis e contributivos.
Ainda em minha adolescência, vi meu pai, com seus 40 e poucos anos e quase 20 de empresa, ser demitido, sem dó. Pude acompanhar a sua luta, retornando aos estudos e buscando graduação. Nessa época, pouco convivemos com ele. Trabalhava de dia e cursava administração à noite. Após a graduação, ele passou a trabalhar em um grande estaleiro em Angra dos Reis. Diante disso, passei a vê-lo apenas aos finais de semana. Essa fase serviu para evidenciar a fortaleza de minha mãe, guardiã do lar, com 4 filhos e a melhor gestora financeira que jamais conheci. Tirava leite de pedra! Era uma vida tranquila, no Rio de Janeiro e as Coca-Colas familiares dominicais em milimetricamente repartidas entre os 4.
Da experiência de meu pai, aprendi a não confiar e esperar retribuição por dedicação e lealdade. Percebi que havia um velado, porém real, paradigma quanto a “validade funcional” dos indivíduos nas empresas. 40 anos já seria um divisor de águas. Dessa forma, criei algumas regras internas quanto à (minha) permanência em uma empresa, e passei a buscar ser profissionalmente independente após os 40.
De minha mãe, as lições foram ainda maiores. Com ela aprendi o respeito indiscriminado, a gastar sempre menos do que ganhava, a zelar por quem precisa e a valorizar as mulheres, que são a grande fortaleza de nossa sociedade, independentemente do papel ou função que assumem. Sejam elas CEO (do lar, inclusive) ou ocupem qualquer outro posto.
Por volta dos 72 anos, com a indústria naval em frangalhos e iniciando uma fase mais delicada de saúde, meu pai foi acometido pelo Parkinson. A empresa em que trabalhava quebrou e, forçosamente, após algumas ondas da reengenharia ceifarem mais de 3 mil funcionários, meu pai se viu obrigado a parar de trabalhar. Começou uma nova fase na vida desse casal, após mais de 40 anos de união regados a muito amor, respeito e cumplicidade.
Com os filhos vivendo em cidades distantes, uma nova dinâmica tomou a vida de meus pais. Ainda com boa disposição, passam a “curtir a vida” e passam a viajar e visitar filhos e netos, e até bisnetos. Idas a Recife, Santiago do Chile e a São Paulo viraram programas frequentes. Sempre com duração curta, pois minha mãe dizia que “visita era como peixe, em pouco tempo começa a cheirar”. Dona Siegrid, minha mãe, seguia firme e forte no comando do lar, rejeitando todos os esforços dos filhos, que insistiam em pagar uma funcionária para ajudar nos afazeres domésticos.
Demorei a entender essa postura, que envolvia tanto gostar das coisas à sua maneira (e não ter ninguém “vigiando” seus passos), como não querer incomodar ninguém. Sempre nos dizia, quando sugeríamos se mudar para junto ou perto dos filhos, que “árvore velha não se replanta”. No fundo, eram apenas sinais de seu desejo e convicção de se manter autônoma e independente.
Tudo ia bem, a vida seguia seu curso, e a celebração das Bodas de Ouro de meus pais se deu com a família toda reunida. 4 filhos, 2 genros e nora, 6 netos e uma bisneta (Dudu e Vicente, os bisnetos caçulas não conheceram a “Bivó”). Foi um encontro divino e marcante, cheio de significados.
Após o retorno de todos às suas casas e vidas, aconteceu algo muito comum (só mais tarde descobri o quão comum). Com 82 anos, firme nos seus afazeres domésticos, nossa Syn (Deusa da mitologia germânica, considerada a guardiã das portas dos mundos), sofreu uma queda, em casa, que resultou numa fratura de fêmur.
Obrigada a passar por 2 cirurgias para colocação de prótese, minha mão enfrentou dores e dificuldades com serenidade. Até que, durante uma visita de minha família, para celebrarmos o dia dos pais e os aniversários de meu filho e o meu, após um almoço regado a cantoria e alegria, com umas rodadas de dominó de sobremesa, cansada, ela pediu para ser levada ao quarto para se deitar um pouco. Ao colocá-la na cama, com todo cuidado, percebemos uma reação estranha. Ela começou a manifestar dificuldades para respirar e pediu ajuda. Foram poucos minutos de extremo desespero. Tentamos de tudo! Respiração boca a boca, compressões torácicas, tudo com a ajuda da enfermeira que estava auxiliando nos cuidados pós cirúrgicos. Foi então que, em meus braços, percebemos não haver mais o que fazer. Ela havia partido.
Ao chegar o SAMU, 10 minutos após seu último suspiro, foram feitas algumas tentativas de reanimação. Em vão. Ela partiu, na presença de seu marido, filho, nora e neto, em decorrência (soubemos mais tarde) de uma embolia pulmonar.
Tudo aquilo foi um misto de emoções. Na hora, desespero e tristeza tomaram nossas mentes e almas. Em seguida, serenidade, pois ela partiu como sempre idealizara, sem grandes sofrimentos, sem estar presa a uma cama, como costumava ressaltar, e após um dia de muita alegria, como que uma ode à vida com sensação de missão cumprida.
É difícil escrever isso, sem me voltarem lágrimas aos olhos e uma saudade imensa.
Aprendizado tardio: não demorou para tomar conhecimento de inúmeros casos semelhantes (de queda) e do risco, amplamente conhecido, de haver embolia num pós-cirúrgico de implante de fêmur. Raiva e indignação foram os sentimentos da vez. Sim, pesquisando e ouvindo especialistas, descobrimos que uma medicação preventiva (até protocolar) poderia ter evitado nossa perda. Entretanto, buscamos reconforto na crença de que O Todo Poderoso sabe o que faz. Pensar assim ajuda, mas não diminui a dor.
Após a partida de minha mãe, imediatamente voltamos nossas atenções ao meu pai, que viveu mais de 52 anos confiando a ela os rumos de sua vida. Tínhamos que fazer algo para que ele não partisse logo na sequência, como boa parte dos conhecidos profetizava.
Ao que parece, nossos esforços foram bem sucedidos e nosso pai recuperou sua vontade de viver (os segredos, eu não conto!). Entretanto, vida que segue, anos se acumulam. E aos 85 anos, após alguns sustos e pequenas passagens por UTI, uma nova internação para o trato de mais uma infecção urinária (comum nessa fase da vida).
Estávamos eu, minha esposa e meu filho em férias do lado de lá do Atlântico quando meu irmão nos comunicou a situação e a descoberta de duas feridas na perna direita, mais precisamente no tornozelo e na planta do pé. O diagnóstico era de psoríase.
Passados dois dias, em nova visita ao meu pai, que se encontrava com delirium, típico de longas permanências em UTIs, meu irmão notou que a bandagem que cobria suas feridas na perna e pé estavam frouxas. Ao examinar de perto, notou um escurecimento na perna. Ao retirar a bandagem… Gangrena à vista. Desespero e agitação na UTI. Corpo clínico acionado, batelada de novos exames e, enfim, um diagnóstico de obstrução arterial de 80%.
Uma angioplastia foi feita e duas, das 3 artérias entupidas, foram desobstruídas. Nada mal! Parecia que as coisas iriam melhorar e que as queixas de dor, as quais ele às vezes mencionava, estariam solucionadas. Ledo e triste engano. Seguindo na UTI para a continuidade do tratamento da infecção, inchaços começaram a aparecer no pé direito. Nisso, as duas feridas ganharam força e entusiasmo, e cresciam, conjuntamente com o escurecimento dos dedos do pé.
Nova junta médica e a recomendação pela amputação da perna, na linha do joelho.
Nisso, eu acabara de retornar ao Brasil e parti às pressas para o Rio. Cheguei a tempo de analisar e interagir com meus irmãos, decidindo pela não amputação.
Permaneci no Rio por uns dias, acompanhando de perto os médicos da UTI e os cirurgiões. Entrou em campo um time especialista em feridas (só para esse tema, já teria material para um livro completo, mas deixemos para outra ocasião). Por fim, alguns dedos gangrenaram e a amputação, limitada a eles, foi inevitável. Saldo: salvamos o pé direito, com seu dedão e mais uma baita ferida, que agora somavam 3, bem consideráveis.
Alinhei com os médicos que, superada a crise da infecção, eu levaria meu pai para São Paulo e assumiria a “gestão” da situação, até em tão, sob responsabilidade de meu irmão. Avaliamos prós e contras, além de riscos envolvidos, e concordamos que o transporte deveria ser rodoviário, pois um voo, naquelas circunstâncias, poderia incorrer em embolia.
Voltei a São Paulo. De acordo com a minha compreensiva e amada esposa, iniciamos juntos um planejamento para a acolhida de meu pai. Teríamos de montar uma estrutura, buscar equipamentos como cama hospitalar, cadeira de rodas, contratar cuidadores, programar todo o apoio da equipe de home-care, enfermagem, tratamento de feridas, fisioterapia, alimentação especial. Enfim, um sem número de atividades complexas e, ao mesmo tempo, urgentes de serem equacionadas. Isso tudo, com a vida profissional e familiar em plena atividade e um filho de 8 anos disputando atenção. De certa forma, tive sorte de já estar me aprofundando nas questões do senescer e compreendia, um pouco, esse complexo mundo que o rodeia.
Nessa hora, percebemos que Deus, realmente, ajuda a quem precisa e tem fé.
Recebo a ligação do hospital e ficou combinada a alta num prazo de dois dias. Foi o tempo necessário para que eu fosse de carro até o Rio, passasse na casa dele, fizesse as malas com roupas e pertences, fosse ao hospital, na companhia de meu irmão, déssemos baixa na papelada, iniciássemos a operação de remoção e acomodação do meu pai, ainda grogue e sob delirium, no carro. Partimos para São Paulo.
Para encurtar a estória, tivemos seis meses de grandes aventuras, altos e baixos, recaídas e recuperações. Mas, enfim, todos os esforços nos foram recompensados.
Tivemos algumas decepções e trocas na equipe, no início. Algumas tentativas de abuso da situação, descaso de alguns “profissionais”, mas empenho e dedicação incondicional de outros, resultando em uma recuperação incrível. Foram cinco meses para as feridas fecharem, com acompanhamento diário de sua evolução. Descobri, na marra, a importância da mudança de decúbito. Sem falar na quantidade de pomadas para tratar e prevenir novas feridas.
Chegou o Natal e com ele os primeiros passos, escorados naturalmente. Meu pai apresentava visivelmente melhora significativa de condições, físicas e cognitivas. O time era de primeira e o atleta dedicado e empenhado em sua reabilitação. Dava gosto de ver sua boa vontade e esforço na busca de sua recuperação, a ponto de ver a fisioterapeuta pedir que fizesse dezmovimentos e ele só parar no décimo segundo. Hoje, considero a vontade do “paciente” o elemento fundamental para qualquer recuperação.
Uma alimentação primorosa, aos cuidados de nossa dedicada Vâninha, que dava jeito de trazer e cozinhar, até, pés de galinhas (colágeno puro), bifes de fígado, enfim, tudo o que se pode imaginar. Esse cuidado nutricional foi determinantes na recuperação de nosso queridão e para o fim da anemia.
Chegou a virada de ano 2019/2020 e, enfim, tivemos uma nova oportunidade de reunir a família. Nova mobilização, agora para um voo para Recife. Sucesso! Não há sensação melhor do que poder ver os esforço de todos ser recompensado. Meu pai, na praia e num banho de mar, cercado de seus 4 filhos, netos e bisnetos… Um sonho inimaginável, 5 meses antes!
Mas o que deveria ser uma curta temporada, diante a pandemia, se tornou praticamente “permanente”. Tive que passar o bastão dos cuidados para minha irmã.
Concomitante a toda essa experiência, nasceu a Chronossomos: resultado de 4 anos de estudo, pesquisas e do sonho de poder contribuir para o bem estar e a valorização das pessoas que entram e lidam com o senescer.
Encorajado por uma amiga e apoiadora, que acreditava na importância e contribuição do projeto, em janeiro de 2020, ela faz o movimento que me faltava para que mergulhasse de cabeça na sua implementação. Reunindo o apoio de grandes parceiros, demos início às nossas atividades, atendendo alguns poucos BeLongers e construindo nossa rede de prestadores 50+.
Nosso atendimento começou a ganhar corpo, quando, em decorrência da pandemia, fomos forçados a suspender as atividades presenciais, uma vez que tanto nossos clientes, como nossos parceiros, fazem parte do grupo de risco. Mas, isso não nos abalou. Pelo contrário! Percebemos que, mais do que nunca, nossa intervenção se fazia fundamental.
Esse cenário pandêmico me trouxe algumas reflexões. O poder público, mesmo buscando o que seria “o melhor para a sociedade”, tomou medidas impensadas e ignorou evidências da realidade, carências e necessidades de muitos idosos (cuidadores foram impossibilitados de ir atender seus pacientes) deixando-os à própria sorte. Ao mesmo tempo, ficou ainda mais evidente a solidariedade do brasileiro, mobilizado para ajudar pessoas solitárias, de grupos de risco, em ações para assegurar o abastecimento de suprimentos nos lares. Todos tiveram de se adequar para assegurar abastecimento dos lares e fazer com que não faltassem itens de primeira necessidade. Outra experiência gratificante, somada com as conquistas domésticas, me fazem persistir na luta pela valorização e resgate do respeito e atenção aos idosos e a quem se aproxima desta fase da vida.
Antes de receber seu nome final, já engatinhávamos com os apelidos de Aldeia Legacy, Priorità, entre outros. A escolha final do nome Chronossomos ousou brincar com elementos da mitologia grega, o Deus Chronos (Deus do Tempo), fazendo uma “trocadilho” com a palavra cromossomos, que representa uma estrutura intracelular, que contêm os genes de uma pessoa, basicamente sua identidade única e seu arquivo histórico genético. A combinação perfeita para tratar cada pessoa como única e vitoriosa na batalha contra o tempo.
Não comentado anteriormente, mas uma outra experiência de vida me proporcionou alguns ensinamentos que carrego e aplico em minha vida pessoal e profissional. Entre meus 10 e 14 anos, fui Escoteiro do Mar, ocasião em que certos valores como respeito ao próximo e ao meio ambiente, a vocação pelo servir, se fortaleceram em meu ser. Descobri que a solicitude só tem valor ao beneficiado quando solicitada pelo mesmo. Brinco com a antiga imagem do Escoteiro apanhando, após ajudar uma senhora a atravessar a rua. Indignados, os transeuntes lhe perguntam: – Por que ela te bateu, se você ajudou-a a atravessar? E ele, triste, responde: – É porque ela não queria atravessar!
E o que a história acima tem a ver com a Chronossomos? Bem, mesmo sabendo que temos muito a ajudar e que, muitas das vezes o senescente não quer, por diversos motivos, ser ajudado, temos que, antes de mais nada, conquistar sua confiança e saber ouvir seus anseios, receios e vontades. E isso está incutido em nossas práticas e registrado em Nossos Valores.
A criação do termo “Vitaliência®”, surgiu da necessidade de denominar, muito além da qualidade de vida, a Vontade de se Viver. Se conseguimos auxiliar nossos BeLongers, independentemente de suas condições físicas, financeiras e até mesmo cognitivas a almejarem estar vivos e ativos, metade da estrada já foi percorrida.
Outra criação nossa, oriunda dos estudos e experiências, foi a denominação de BeLonger, para nossos, vamos dizer, clientes. Um trocadilho, dessa vez em inglês, para combinar as condições longevas e a ideia de pertencimento, essencial a nós seres humanos. Recentemente, criamos outra chancela inovadora. Visando provocar a atenção e reação do mercado de produtos e serviços a criar e oferecer soluções específicas ao público 50+, criamos o Selo Empresa Amiga do Idoso. Esta certificação permite aos consumidores reconhecer as empresas que, de forma legítima, se sensibilizam e respondem à causa do senescer. O selo avalia requisitos e práticas que sejam alinhadas e coerentes com seu público-alvo.
Seguimos com muitos desafios a vencer e, com o seu apoio, poderemos muito mais.
Venha ser um BeLonger!
Mauro Schweizer Leite, CEO da Chronossomos.
CEO da Chronossomos, Mauro é formado em engenharia, com pós nas Universidades Federais de São Carlos e Santa Catarina, possui MBA em Gestão, pela FGV-SP. Possui um histórico profissional diversificado, tendo atuado como Executivo em empresas como Shell, Alcoa, InterClínicas, entre outras, consolidando sua ampla visão empresarial e de negócios ao longo de mais de 20 anos em Consultoria, em empresas como Coopers&Lybrand, PwC e PrópriaCo, onde desenvolveu metodologias e sistemas, que entre outros, focaram em auditoria e certificações em questões socioambientais, de governança, de qualidade, entre outras. Há mais de 8 anos estudando o aging process (senescência) e atuando no reconhecimento, promoção, valorização e inclusão do público 50+.